domingo, 18 de janeiro de 2009

Tragédia histórica do cotidiano

O velho Benedito virou uma dose de cachaça no bar da Catorze. Uma de muitas. Olhou a TV. Fogões, camas, motos, viagens. Olhava hipnotizado. Aquilo era sua fantasia, à qual jamais teve acesso. Ternos, sapatos, chapéus. Jamais. Outra dose. Observa seus companheiros. O olhar triste que eles apresentam é certamente igual ao seu. Tanto na aparência quanto na causa. Na rua passa um moleque fumando um baseado. Ele ostenta roupas caras e ouve um iPod. Por quê?
Benedito trabalhara anos duros, quando a industrialização se fazia pesada por ser nova. Perdera dois dedos; polegar e indicador da mesma mão. Outra dose. Ganhara o vício da cachaça. Trocara seu cigarro de palha por um de nicotina, industrializado. Ganhou vontades. Posteriormente tornaram-se necessidades. A televisão às deu. Possibilitou o lucro do seu patrão e o progresso do país. Hoje, talvez o patrão estivesse bem, o país não se sabe ao certo - como sempre -, e ele estava se sentindo um lixo. Em troca de quê?
Bêbado, inútil à sociedade, mau olhado pelos cidadãos e seus parentes. Outra dose. Companheiros fiéis eram mesmo os conhecidos e desconhecidos que frequentavam o bar da Catorze, e visivelmente sua tosse seca, que jamais surgia sem um pouco de sangue para acompanhar. Sua alegria só se fazia quando, sob o efeito do álcool, se sentia confiante, seguro. As necessidades televisivas, juntamente com suas mulatas e floreios, pareciam acariciar seu rosto marcado e maltratado. Pisava em nuvens, sentia-se rei. Derruba a dose no chão.
Sente-se elevado. Corajoso e bravo. Levanta-se. Derruba o banco atrás de si. Joga o que tem no bolso sobre o balcão sujo e melado. Cinco reais e quarenta centavos. Vira-se e cai. Abre os olhos e vê o chão. Sente um cheiro forte de cerveja e urina. Alguém o levanta. Benedito o estranha. Puxa o seu canivete do bolso esquerdo, o qual cai devido à falta de dedos do seu dono. Xinga vorazmente seu antes companheiro fiel. O empurra e ganha a calçada.
Pragueja em voz alta e cambalea intensamente. Se agarra a um poste ao perder o equilíbrio externo; o interno fora assassinado pela sociedade. Transeuntes passam indiferentes. Ninguém parece o ouvir. Tornou-se um fantasma o qual ninguém teme, nem sequer sente. Sua presença é confundida com a das placas, dos prédios, das lixeiras. Sua voz se dissipa no ronco dos carros, nos anúncios de supermercados, vendas de importados. Chora. Vira criança.
Ganha o meio da rua engatinhando. Senta-se. Berra um choro doído, forte. Tanto que chama a atenção da frenética cidade. Os carros param, os funcionários colocam suas cabeças para fora das janelas dos prédios, os bancários se atropelam nas portas giratórias, o moleque tira seu iPod do ouvido, o sanfoneiro interrompe sua tocata, os mendigos nos sinais se viram para o velho.
O que ele faz é chorar a injustiça. Deu a vida à sociedade e em troca recebera suas chagas, seu chicote. Após um minuto a cidade retoma sua atividade. É mais um velho, um lixo que não se quer. Alguns comentam sobre como reciclar o cidadão, para que ele torne a ser de alguma forma útil. Comentam e só.
O velho Benedito se levanta entre os carros em movimento. Olha ao seu redor. Tudo parece girar. O que ele pode fazer agora? Sem dinheiro não há mais a companhia do bar da Catorze. Contudo a tosse não o deixa. Suspira. Umas duas vezes. Pensa em voltar à calçada. O faz. E um carro importado cheio de mulatas e eletrodomésticos de última geração o atropela. Seu corpo é lançado à sarjeta. Vê o tênis importado do moleque rico. A tosse dá seu último ataque e o sangue salta para o cadarço do rapaz, o qual se sente um tanto aflito.
Benedito Amparo Rodrigues, 68 anos, ex-metalúrgico morre como indigente por não portar cédula de identidade e não causar saudade a ninguém.

Nenhum comentário: