terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Do preconceito

Este post tem como objetivo tentar construir uma definição para preconceito enquanto sentimento infundado, injustificado, que reflita a real necessidade de nos libertar dele.
Partindo do ponto de que um preconceito é uma idéia que antecede ao conceito, podemos talvez traçar um paralelo com o mundo das idéias de Platão. Segundo essa teoria platônica, haveria um mundo constituído de idéias originais e imutáveis as quais seriam as matrizes das formas que conhecemos através de nossos sentidos e que constituem o mundo tal qual nos é apresentado, ou seja, haveria um mundo ideal onde as formas são perfeitas e, dessa forma, assumiriam a função de "fôrma", "modelo" das formas do nosso mundo. É claro que as formas que conhecemos através dos nossos sentidos não são todas exatamente iguais, o que caracteriza para nós formas imperfeitas.
Ora, se aceitamos a possibilidade de haver formas perfeitas, então esperamos que todas as formas sejam iguais ao modelo, ou ao menos parecidas. Talvez possamos encarar essa idéia de "forma ideal" como preconceito, na medida em que tal idéia antecede ao conceito experimentado pelos nossos sentidos. Portanto o preconceito está ligado à expectativa que se cria sobre à comparação dos objetos, das pessoas, enfim das coisas, com relação à "matriz", à "fôrma". Ao detectarmos algo diferente do modelo teremos um preconceito acusador, como quem pensa: "Aí está algo estranho que não merece minha atenção". Se observamos algo próximo ao modelo - e vale lembrar que estamos tratando de formas estéticas, sejam de pensamentos, sejam físicas -, teremos um preconceito acolhedor, como quem pensa: "Eis algo que quero próximo de mim".
E como surgem essas formas ideais? Existem várias idéias que respondem em parte essa pergunta. Acreditamos que elas sejam formadas à partir da conformação cultural de um povo ou de uma sociedade. Sendo assim, essas formas são relativas; cada qual é produto particular de um processo histórico de formação. Através da análise do processo histórico da formação de uma sociedade podemos apontar a construção de uma cultura, a qual poderá nos dizer quais são essas formas ideais. Exemplo disso é a Reforma Protestante que possibilitou uma cultura de usura, a qual era proibida pela Igreja Católica, permitindo o avanço do modo capitalista de produção. Veja: para um católico o usurário era mal visto e condenado à danação eterna; para o protestante o usurário era uma pessoa digna, cuja atividade era totalmente lícita. Com o passar do tempo a Igreja Católica abriu mão do seu dogma, fazendo do usurário um rapaz de bem para os católicos. Antes tínhamos um preconceito acusador, e depois, acolhedor, só pelo fato de transformar essas formas ideais.
A forma ideal de uma pessoa hoje é aquela bem sucedida, que trabalha numa empresa respeitada, ganha um bom dinheiro e consome horrores. Tanto é que a sociedade em geral a quer bem, a vê como vencedora, desprezando o impacto do seu consumo doentil no planeta em que vive. Enquanto isso, o seu olhar - da sociedade - encontra os pobres e os condenam, ignorando o fato da pobreza ser produto da sua própria forma de viver; para ela essas pessoas são a escória, o lixo, os vagabundos que negam os bons valores, como se fosse possível julgar esses valores.
É aqui que queríamos chegar. O preconceito está nos olhos de quem acha que todas as coisas deveriam ser iguais ou próximas ao modelo, mas ignoram o fato de haver variadas origens e diversas realidades, bem diferentes uma das outras. Temos, portanto, que levar em consideração a realidade contextual e a história de cada coisa para expressar uma opinião mais justa a respeito da mesma.

P.S: É claro que nenhum conhecimento é absoluto.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Tragédia histórica do cotidiano

O velho Benedito virou uma dose de cachaça no bar da Catorze. Uma de muitas. Olhou a TV. Fogões, camas, motos, viagens. Olhava hipnotizado. Aquilo era sua fantasia, à qual jamais teve acesso. Ternos, sapatos, chapéus. Jamais. Outra dose. Observa seus companheiros. O olhar triste que eles apresentam é certamente igual ao seu. Tanto na aparência quanto na causa. Na rua passa um moleque fumando um baseado. Ele ostenta roupas caras e ouve um iPod. Por quê?
Benedito trabalhara anos duros, quando a industrialização se fazia pesada por ser nova. Perdera dois dedos; polegar e indicador da mesma mão. Outra dose. Ganhara o vício da cachaça. Trocara seu cigarro de palha por um de nicotina, industrializado. Ganhou vontades. Posteriormente tornaram-se necessidades. A televisão às deu. Possibilitou o lucro do seu patrão e o progresso do país. Hoje, talvez o patrão estivesse bem, o país não se sabe ao certo - como sempre -, e ele estava se sentindo um lixo. Em troca de quê?
Bêbado, inútil à sociedade, mau olhado pelos cidadãos e seus parentes. Outra dose. Companheiros fiéis eram mesmo os conhecidos e desconhecidos que frequentavam o bar da Catorze, e visivelmente sua tosse seca, que jamais surgia sem um pouco de sangue para acompanhar. Sua alegria só se fazia quando, sob o efeito do álcool, se sentia confiante, seguro. As necessidades televisivas, juntamente com suas mulatas e floreios, pareciam acariciar seu rosto marcado e maltratado. Pisava em nuvens, sentia-se rei. Derruba a dose no chão.
Sente-se elevado. Corajoso e bravo. Levanta-se. Derruba o banco atrás de si. Joga o que tem no bolso sobre o balcão sujo e melado. Cinco reais e quarenta centavos. Vira-se e cai. Abre os olhos e vê o chão. Sente um cheiro forte de cerveja e urina. Alguém o levanta. Benedito o estranha. Puxa o seu canivete do bolso esquerdo, o qual cai devido à falta de dedos do seu dono. Xinga vorazmente seu antes companheiro fiel. O empurra e ganha a calçada.
Pragueja em voz alta e cambalea intensamente. Se agarra a um poste ao perder o equilíbrio externo; o interno fora assassinado pela sociedade. Transeuntes passam indiferentes. Ninguém parece o ouvir. Tornou-se um fantasma o qual ninguém teme, nem sequer sente. Sua presença é confundida com a das placas, dos prédios, das lixeiras. Sua voz se dissipa no ronco dos carros, nos anúncios de supermercados, vendas de importados. Chora. Vira criança.
Ganha o meio da rua engatinhando. Senta-se. Berra um choro doído, forte. Tanto que chama a atenção da frenética cidade. Os carros param, os funcionários colocam suas cabeças para fora das janelas dos prédios, os bancários se atropelam nas portas giratórias, o moleque tira seu iPod do ouvido, o sanfoneiro interrompe sua tocata, os mendigos nos sinais se viram para o velho.
O que ele faz é chorar a injustiça. Deu a vida à sociedade e em troca recebera suas chagas, seu chicote. Após um minuto a cidade retoma sua atividade. É mais um velho, um lixo que não se quer. Alguns comentam sobre como reciclar o cidadão, para que ele torne a ser de alguma forma útil. Comentam e só.
O velho Benedito se levanta entre os carros em movimento. Olha ao seu redor. Tudo parece girar. O que ele pode fazer agora? Sem dinheiro não há mais a companhia do bar da Catorze. Contudo a tosse não o deixa. Suspira. Umas duas vezes. Pensa em voltar à calçada. O faz. E um carro importado cheio de mulatas e eletrodomésticos de última geração o atropela. Seu corpo é lançado à sarjeta. Vê o tênis importado do moleque rico. A tosse dá seu último ataque e o sangue salta para o cadarço do rapaz, o qual se sente um tanto aflito.
Benedito Amparo Rodrigues, 68 anos, ex-metalúrgico morre como indigente por não portar cédula de identidade e não causar saudade a ninguém.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Um fim de semana esclarecedor

Quero mudar o assunto. Variar. Vi dois filmes do Woody Allen nos últimos dois dias, o que me desvia o olhar das questões de classes sociais e seus atritos para os atritos dos relacionamentos amorosos. Para mim isso representa uma ferida aberta, como alguns sabem; tocar nesse assunto é jogar água oxigenada sobre o machucado. Mas há a promessa de cicatrização. Bom.
Num dos filmes, "Annie Hall", Allen diz uma coisa fantástica, muito esclarecedora. Ele diz o seguinte, não com essas palavras: há uma piada que diz que uma pessoa foi ao psiquiatra e disse:

- Dr., meu irmão está com um problema terrível! Ele acha que é uma galinha e age como tal!

E o psiquiatra pergunta:

- E por que você não o trouxe para que eu pudesse examiná-lo?

O sujeito responde:

- Não posso trazê-lo agora. Estou esperando seus ovos.

Moral da história: O amor é uma doença e conhecemos sua cura. Porém estamos sempre esperando pelos ovos. Fantástico, não?
Por amarmos uns aos outros, no sentido erótico, nos tornamos loucos. Reconhecemos essa loucura, mas não a queremos curar. Muito estranho. Muito. E essa loucura nos faz crescer enquanto seres humanos, sabe. Por incrível que pareça, pode até nos tornar mais lúcidos, ou não.
Mas, quer saber? Isso é tudo tão estranho que vou parar por aqui.
É isso.